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domingo, 29 de novembro de 2015

ESCOLHA


Quem escolhe a própria sexualidade?
Embora haja uma quantidade grande de pessoas que acreditam que o desejo sexual de alguém seja uma escolha, uma opção, eu acredito que não. Verdade é que, nunca ouvi um heterossexual dizendo: escolhi ser hétero. Por que um gay deveria?

Há quem acredite que em tempos imemoriais eu tenha feito esta escolha, consciência dela, não tenho. Embora tenha sentido seus impactos mais fortes durante aproximadamente 30 anos da minha vida. Estas mesmas pessoas acreditam que eu deva fazer outra escolha.

O dia amanheceu belo, era outono, 27 de maio de 1980, uma família cristã que já contava com duas meninas recebia naquele dia, um lindo menino de olhos verdes brilhantes. O principezinho Davi chegava para alegrar a família. Não é possível descrever a alegria que sentiram pelo seu nascimento, mas eles não sabiam que aquela criança havia sido predestinada ao sofrimento.

A medida que ia crescendo, algumas coisas foram ficando aparentes para ele. Mas para quem?

Seu desgosto com o futebol, não por falta de tentativa, mas por sua inabilidade com a bola, antes acertava a canela dos colegas. Era o ultimo a ser escolhido pelos times, isso quando não era excluído da brincadeira. Isolado, sua única opção era se unir as meninas em suas brincadeiras. Não era chegado a brincadeiras de luta, como seu irmão mais novo, não gostava de brigar na rua e geralmente voltava para casa chorando. Poucas vezes se atreveu a revidar alguma agressão. Quando chegou a fase escolar tinha problema com os meninos da turma, bom aluno e quieto, já estava acostumado à companhia das meninas e isso era motivo de chacota, menininha, marcas, CDF entre outros adjetivos. Adorava dançar e quis fazer ginástica olímpica, sabia de cor as coreografias das músicas dos grupos infantis da época e isso agravava as ofensas que recebia. Devido às várias agressões verbais que sofria, se tornou seletivo nas amizades. Com poucos amigos, se tornou mais caseiro e amantes dos estudos e livros. Na adolescência percebeu que chamava a atenção mais dos homens que das mulheres, uns para ofende-lo e outros com insinuações do tipo "é disso que ele gosta" seguido de uma balançada no "documento". Tinha medo, fugia e chorava, embora a cada dia tomasse a consciência do que poderia ser, a única coisa que o deixava com mais medo era crescer e ficar parecido com Clodovil Hernandez, Seu Peru ou a aterrorizante Vera Verão.

Aos 13 anos decidiu se batizar na igreja, a promessa cristã de "receber uma nova vida" o fez acreditar que como mágica tudo mudaria. Fiel e dedicado, se doou de coração a jejuns, orações e leituras da bíblia, em pouco tempo era bem visto por sua sabedoria e conhecimento das escrituras. O que ele não entendia é o porque as coisas não mudavam. As insinuações agora aconteciam no ônibus, metro ou mesmo no trabalho. Assédios sexuais foram poucos, porém assustadores, duas vezes no trabalho, duas vezes no metro onde inclusive chegaram a passar-lhe a mão, além de um convite para sair com um homem mais velho "porque eu sei que é disso que você gosta e ninguém precisa saber". Tudo isso intensificou a sua fé e busca de Deus, pois o Senhor. E sua juventude foi marcada pelo medo e choro, entre jejuns e orações para que Deus o livrasse de ser uma abominação e condenado ao inferno. Ele não queria ser gay e a religião era seu escudo e sua vida. Evitava sair com os amigos para entretenimentos "mundanos" e intensificou suas atividades na igreja como forma de "pagar" o amor de Deus, mas nem mesmo na igreja conseguiu se livrar dos ataques que sofria, havia desconfiança de alguns e de onde deveria receber amor incondicional e ajuda, recebeu também acoites ao ponto de ser proibido de ter amizades  com alguns sob a acusação poder pervertê-los. Neste interim, teve 3 relacionamentos com meninas que não deram certo. Se dizia apaixonado, mas eram sempre amores platônicos e impossíveis. Se tornou pastor e continuava orando, esperando o milagre de sua transformação. Em tudo isso sofria sozinho e calado.

Quem pode avaliar a tristeza, a dor, o medo e a pressão psicológica pela cobrança de si mesmo, dos outros em relação a sua sexualidade, pois "todos da sua idade já namoram e você nada", além do ataque daqueles que desconfiavam e estavam apenas aguardando a confirmação para colocar toda a sua malignidade e preconceito para fora.

Atribui-se a Sigmund Freud a frase "Como fica forte uma pessoa quando esta segura de ser amada", e o que menos se sente nesta posição é que se é amado. Sentir-se deslocado em relação a si mesmo, aos outros e ao mundo se torna natural. Estar em outra realidade e tentar sobreviver não é uma escolha mas a única opção, mas com consequências pesadas pela autoacusação de estar vivendo uma mentira.

Apaixonei a primeira vez, por um homem, a certeza de sua homossexualidade aos 28 anos, o desejo de viver e experienciar tudo o que rejeitou durante toda a vida se misturam a ansiedade e ao medo. O fortalecimento pelo fogo da paixão, a coragem, a ousadia, o reconhecimento de quem se é de verdade. A coragem para se declarar e o desespero pela primeira desilusão amorosa, motivo de depressão, de pensamentos suicidas, da perda da voz e do afastamento da igreja por não querer mais mentir dizendo "estar esperando em Deus a futura namorada". .

Estava sendo forçado a fazer um nova escolha.
Um processo de redescoberta que incluía o "sair do armário".
Mais sofrimento, mas um sofrimento libertador

Escolhi me amar como sou, me aceitei e aprendi a me  re-conhecer.
Escolhi "abandonar as roupas e usadas, que já tem a forma do nosso corpo, esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos"  (*)
Escolhi não me deixar levar por pensamentos de suicídio e nem pela depressão.
Escolhi ter segurança no que quero e em como construiria meu novo eu.
Escolhi ficar ao lado de pessoas que me admiram pelo que sou e não pelo status que podia oferecer, pois me tornei uma pessoa não grata em alguns círculos.
Escolhi não me reduzir a rótulos e opiniões de quem não sabe minha historia.
Escolhi não me intimidar com os discursos de ódio e pela falta de amor dos que se decepcionam com a verdade.
Escolhi pelo amor incondicional de Deus e pelo amor de quem me ama e respeita de verdade.
Escolhi mesmo que contra todas as circunstancias negativas (social), ser feliz.
Escolhi usar o que foi motivo de prisão para minha própria libertação:
Dançar quando tiver vontade, rir até a barriga doer, lutar pela vida e pela paz com todos.
Estudar, devorar livros, ir ao cinema, sair com os amigos ou, ficar em casa acordados até de manhã.
Escolhi não deixar a religião, ir a igreja, orar e jejuar foram resignificados, não mais por tristeza mas por alegria.
Escolhi comungar da presença de Deus que está nas pessoas comuns, não em "vacas sagradas" hipócritas e desumanas.
Escolhi me apaixonar pelo belo, pelo virtuoso e pelo bom, pelo que vale a pena.
Me sentir amado. 
Ser feliz.

Escolhi viver...mesmo que para você isso se resuma a ser gay.



(*) Texto:
Tempo de Travessia
Autor: Fernando Teixeira de Andrade


domingo, 15 de novembro de 2015

NÔMADE

Ayaan Hirsi Ali, uma mulher somali, ex- muçulmana que fugindo de um casamento arranjado por seu pai, se refugia na Europa e depois Estados Unidos, nos revela com sua historia de vida, o que uma cultura de soberania masculina, fortalecida por ritos religiosos pode fazer contra suas mulheres e contra aqueles que se poe a seus dogmas e leis.

Violência doméstica, proibição de estudar, devoção irrestrita aos homens, mutilação genital, esta é a vida de muitas meninas muçulmanas pelo mundo, de acordo com ela. Uma vida de clausura não somente do corpo que em alguns países, precisa estar completamente cobertos, da mente pois são proibidas de estudar, da individualidade pois como propriedades do pai e precisam viver para honra-lo, uma moça "violada" além de vergonha para a família, não tem valor algum no mercado de casamento, mas também na clausura de sua sexualidade, para serem privadas do prazer sexual, são mutiladas ainda meninas, seu clitóris e esmagado e os lábios vaginais costurados para que elas sintam dor. 

O clamor de Ayaan ultrapassa a reclamação de uma rebelde, fugitiva, é o clamor de uma mulher que contra a própria vida, ousou falar contra um sistema que mantém vários povos do mundo e principalmente as mulheres debaixo da pobreza extrema e de condições desumanas com base em um discurso religioso que se utiliza da cultura da violência e do medo para se manter.

Entretanto Ayaan vai além, revela a face extremista de uma religião que segundo consta é a que mais cresce no mundo, o Islamismo. Ela sem medo da pena de morte que recebeu por se dizer uma ex-muçulmana e agora uma infiel - nome dado à todos os que não professam sua fé ou que a deixam - detalha as intenções destes radicais e como estão se infiltrando na Europa e Estados Unidos para colocar em pratica seu plano diabólico de destruição de todo o Ocidente, Para ela, os radicais acreditam estar em uma guerra santa entre Alá e o Profeta e todos aqueles que a partir do Iluminismo, se desviaram da verdade, adotando a razão e a ciência como ponto de apoio para a vida e não mais a fé em Deus.

Para Ayaan, que iniciou sua jornada contra o Islã radical após os atentados terroristas de 11 de Setembro, o que fortalece o Islã  é a vida pre-moderna dos países declarados muçulmanos, pois sua cultura teocrática possibilita a manutenção do poder dos radical por meio da pobreza extrema, violência e  proibição do acesso a educação. O sistema de manipulação o que ela chama de lavagem cerebral é tão planejado que eles atribuem todas as mazelas que subjugam o povo aos "pecados do Ocidente", utilizando se do Alcorão para firmar que todos os que não vivem sob os preceitos de Alá e do Profeta devem ser exterminados. 

Longe de acreditar que todo muçulmano é radical e terrorista, ela nos alerta para o fato de que, desde cedo, todo muçulmano é doutrinado a acreditar que os infiéis devem ser exterminados, e que apenas isto basta para que eles se levantem contra os ocidentais para honrem a Alá e ao Profeta. Para ela, todos são terroristas em potencial, uma vez que já que o fazem com suas mulheres, citando várias referencias do Alcorão em que o Profeta ordena que elas sejam violentadas.

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Nesta semana em que um ataque terrorista em Paris na França matou cerca de 120 pessoas, muito do que Ayaan descreve no livro se torna real, de acordo com a mídia o Estado Islâmico se declarou culpado pelos atentados e esclareceu ser este apenas o começo da vingança de Alá contra Ocidente, e que a França e quem a segue são seu principais alvos.

Durante todas as 384 páginas ela fala muito sobre o Iluminismo, momento histórico do século 18 iniciado na França cujos pilares principais estão a defesa da educação, centralidade da ciência e da razão, a liberdade religiosa e individual e os direitos de igualdade de todos perante a lei. Para ela o Iluminismo propiciou o desenvolvimento do Ocidente e são seus pilares que vão contra os ditames do Islã e são a causa de tamanho ódio e sentimento de vingança.

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Nômade
Aayan Hisri Ali
Companhia das Letras
388 páginas